Gustavo Gil Peres
Matheus Vasconcelos
RESUMO
O Direito Penal e Processual Penal moderno se constitui num direito penal garantista, à luz do sistema processual penal acusatório, presente de forma implícita na Constituição Federal da República. Tal afirmação se faz necessária em face do momento histórico atual do nosso sistema político-jurídico, qual seja, um Estado Democrático e Constitucional de Direito. Entretanto, boa parte dos julgadores criminais, deixam de observar estritamente o referido sistema processual penal no momento em que abandonam o seu papel de sujeito processual inerte, adotando uma postura ativa no tocante a gestão da prova. Tal agir fere de morte os princípios constitucionais do processo penal pátrio e têm como justificativa por parte dos magistrados alguns dispositivos do ultrapassado Código de Processo Penal, datado de 1941, dispositivos estes que sequer foram recepcionados por nossa Lei Maior.
INTRODUÇÃO
O presente artigo busca investigar a adequada função do Juiz Criminal frente ao sistema processual penal acusatório, que sofre forte resistência do próprio Poder Judiciário para ser, de fato, implementado.
O grande marco do sistema acusatório no Brasil se deu com a promulgação da Constituição Federal, em 1988. Com ela, alterou-se de forma significativa o rumo do processo penal brasileiro, trazendo em seu bojo uma série de garantias e princípios que deram uma nova roupagem às relações processuais penais pátrias.
Posteriormente, outras alterações legislativas buscaram promover o sistema acusatório dentro do processo penal brasileiro, inclusive para tentar adequar seu texto ao texto constitucional, uma vez que o CPP, criado em 1941, é inspirado no Código Processual Penal Italiano da década de 30, quando o Fascismo estava a todo o vapor na Itália.
Uma dessas alterações foi o acréscimo do Artigo 3-A, no Código de Processo Penal, que previu de forma expressa, pela primeira vez, o sistema processual penal acusatório. Todavia, diversos outros dispositivos presentes no Código de Processo Penal que conflitam com o sistema acusatório continuam presentes na lei e, pior, sendo utilizados pelos Julgadores.
Assim, percebe-se que não bastam alterações legislativas, pois mesmo quando elas ocorrem, na prática, o que se vê é um malabarismo jurídico na aplicação da norma, em total desconformidade com o texto legal e a ordem constitucional.
Por isso, entender o papel do Juiz Criminal no Processo Penal Brasileiro se faz necessário, na medida em que qualquer alteração legislativa não surtirá efeitos enquanto os responsáveis por sua aplicação não se conscientizarem da relevância da sua função dentro desse sistema.
O SISTEMA ACUSATÓRIO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA
A Constituição Federal de 1988 alterou de forma significativa o rumo do processo penal brasileiro, ao trazer em seu bojo uma série de garantias e princípios que deram uma nova roupagem às relações processuais penais pátrias.
Tais modificações foram inspiradas e amparadas por um Estado Democrático e Constitucional de Direito, que uma vez consagrado pela Carta de Outubro, teve como um de seus principais objetivos assegurar aos cidadãos uma série de direitos e garantias definidos como fundamentais, a serem estritamente observados pelo Estado, a bem de evitar o avanço arbitrário e indiscriminado deste sobre aqueles.
Após a promulgação da Carta Magna de 1988, as legislações infraconstitucionais vigentes necessariamente passaram a ser vistas sob um novo enfoque constitucional.
Sabidamente, a Constituição ocupa o lugar mais elevado na “pirâmide hierárquica”, consagrada por Kelsen, impondo de forma soberana seus princípios e suas regras sobre as demais leis existentes no ordenamento jurídico pátrio. Assim sendo, toda e qualquer lei existente na data da entrada em vigor da CF/88 teve de passar pelo chamado filtro constitucional, a bem de se apurar se esta foi ou não recepcionada pela Carta Política, se está em perfeita consonância com o espírito constitucional e com o Estado Democrático e Constitucional de Direito. Deve-se a este fenômeno, o fato de que muitas leis deixaram de ter vigência por afrontarem determinados princípios e garantias asseguradas pela CF/88.
Do mesmo modo, qualquer dispositivo que viole o sistema processual penal acusatório, perde a sua aplicabilidade, sua vigência, por violar a política processual penal adotada por nossa Lei Maior. Na esteira de Aury Lopes Jr., “o processo penal deve passar pelo filtro constitucional e se democratizar”.
Como consequência dessas mudanças, de acordo, ainda com sábia lição de Aury Lopes Junior, “o processo penal passou a ser um instrumento que visa assegurar a máxima eficácia das garantias fundamentais, e não um mero instrumento a serviço do poder punitivo estatal.”
Embora ainda haja divergências por parte de respeitáveis nomes da doutrina pátria, no tocante ao sistema processual penal adotado no país, a grande maioria dos autores, entre eles Fernando da Costa Tourinho Filho, Ada Peregrini Grinover, Paulo Rangel, José Frederico Marques, entre outros, afirmam que a Constituição Federal/88, ao instaurar um Estado Democrático e Constitucional de Direito, adotou o sistema acusatório como o sistema a ser utilizado para reger as relações processuais. Por mais que não contenha nenhum dispositivo aduzindo de forma explícita, basta uma breve análise em seus regramentos para se concluir que este foi, de fato, ainda que implicitamente, o sistema processual eleito por nossa Carta Magna.
Tanto é, que nela estão assegurados o direito ao contraditório e a ampla defesa, a separação das funções de acusar, defender e julgar, a publicidade dos atos processuais, bem como inúmeras outras garantias que são características de um sistema processual penal de face acusatória.
No que tange a publicidade dos atos processuais, conforme acima referido, dispõe o artigo 93 da CF/88, nos seguintes termos:
Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:
IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;
Portanto, a nossa Lei Maior consagrou a transparência do processo judicial como regra, ressalvadas as exceções expressamente dispostas em lei, assim como determinou que todas as sentenças devem ser minuciosamente fundamentadas, possibilitando, desta forma, que as partes integrantes da relação processual saibam exatamente quais as provas que levaram o julgador a exarar a sua sentença em determinado sentido, ao passo que possibilita também a parte condenada recorrer do “decisum” do qual restou sucumbente e insatisfeita.
Em relação ao órgão acusador, o Ministério Público, este passou a ser encarado como pilar da democracia e do Estado Democrático de Direito, sendo um órgão vinculado ao Poder Executivo, porém sem relação de hierarquia ou subordinação. A CF/88, em seu art. 127, demonstrou de forma inequívoca a importância do Ministério Público para a manutenção do equilíbrio tanto nas relações entre os poderes estatais, como nas relações entre indivíduos e o Estado e até mesmo nas relações que envolvam litígios somente entre indivíduos, senão vejamos:
Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Com a promulgação da Carta Maior, essa instituição ganhou notoriedade e poder, para que possa cumprir com as suas funções constitucionais, sejam elas a de órgão acusador, de órgão fiscal da lei, de órgão fiscalizador do poder público, entre outras funções de imprescindível relevância para fortalecer a Democracia do país.
Nas sábias palavras de José Cretella Junior, “ausente este órgão, a Justiça não se faz de modo completo”.
Há ainda, doutrinadores que elevam o Ministério Público ao que se poderia chamar de quarto poder, tendo em vista a sua insubordinação, seu poder, o fato de ter orçamento próprio, bem como a sua importância para a manutenção da Democracia no país. Com a predominância do sistema acusatório, o Ministério Público ganhou ainda mais destaque, uma vez que, salvo em exceções, onde a acusação fica a cargo da vítima ou por quem tenha legitimidade, toda e qualquer acusação penal feita pelo Estado será de competência do Ministério Público, que será responsável por dar início ao processo criminal.
Logo, as funções acusatória e julgadora são atribuídas a órgãos distintos, diferenciando-se completamente da prática do sistema inquisitório, em que o juiz se torna o responsável por toda a movimentação processual, bem como pelos atos de acusação e julgamento.
A FUNÇÃO DO JUIZ NO SISTEMA ACUSATÓRIO
Como já mencionado, a Constituição Federal de 1988, ao instituir o Estado Democrático e Constitucional de Direito, adotou o sistema acusatório como base para o processo penal, impondo a separação entre as funções de acusar, defender e julgar. Esta estrutura visa garantir a imparcialidade do juiz e assegurar um julgamento justo.
No sistema acusatório, o juiz tem um papel de imparcialidade, devendo atuar de forma neutra e equidistante entre as partes. As suas funções são claramente delimitadas, não se confundindo com as funções de acusar e de defender.
A função principal do juiz é garantir que o processo transcorra de acordo com a lei, assegurando os direitos das partes e garantindo que a verdade dos fatos seja apurada de maneira justa e transparente.
De acordo com a Constituição Federal e a legislação processual penal, o juiz deve:
- Manter a imparcialidade e a equidistância entre as partes;
- Garantir o cumprimento dos direitos e garantias constitucionais dos réus;
- Assegurar que o processo seja conduzido de maneira justa e eficiente;
- Decidir com base nas provas apresentadas e de acordo com a legislação vigente.
Contudo, observa-se na prática que muitos juízes, ao se distanciar do seu papel neutro, acabam assumindo uma postura ativa na gestão da prova, o que pode comprometer a imparcialidade do processo. Essa prática é um reflexo de uma visão ultrapassada do processo penal, que ainda é influenciada por normas e conceitos do Código de Processo Penal de 1941.
É essencial que o juiz, ao exercer suas funções, mantenha o respeito pelas normas constitucionais e pelos princípios do sistema acusatório, para garantir a justiça e a legalidade do processo penal.